terça-feira, fevereiro 01, 2005

REPORTAGEM publicada no GLOBAL, Janeiro de 2005



OITO DEPUTADOS DA ESQUERDA UNITÁRIA EUROPEIA DESLOCARAM-SE AO CURDISTÃO TURCO. FALARAM COM ORGANIZAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS, PARTIDOS, SINDICATOS E PRESIDENTES DE CÂMARA. REUNIRAM TAMBÉM COM O GOVERNADOR TURCO DA REGIÃO. E ESTIVERAM COM COMUNIDADES MARCADAS POR 17 ANOS DE UM CONFLITO QUE OS MILITARES TURCOS SE RECUSAM A ENTERRAR. Texto e fotos de Miguel Portas




Aldeões de Birkill, aldeia curda queimada pelo exército turco nos anos 90
as bermas da estrada repousa uma pequena homenagem. São duas fotografias rodeadas por um círculo de pedras e algumas flores. As imagens são as de um pai e seu filho. Tinha-as visto num jornal turco do dia anterior, ainda em Istambul, com legenda oficial lacónica. Qualquer coisa no género de “Acusados de terrorismo mortos em território de conflito”.

O pai, Ahmet Kaymaz, motorista, tinha 31 anos e oito balas no corpo. O filho, Ugur Kamaz, de doze, recebeu 13 tiros. No Curdistão é possível que um miúdo de 12 anos possa ser qualificado de “terrorista”. E ainda não é estranho que numa “resistência à autoridade”, os únicos mortos do “conflito” recebam 21 tiros e não existam, sequer, ferimentos do outro lado. O que se passou naquele lugar foi, com toda a probabilidade, uma execução à queima roupa.

Ao lado do improvisado memorial, o povo da aldeia esperava a chegada do grupo de deputados europeus. Interromperam o trabalho para nos receberem. Depois de no dia anterior mais de cinco mil pessoas terem assistido a um comício de protesto, agora éramos aguardados por mais de uma centena, que acompanhavam a família enlutada na exigência de uma investigação séria e independente. Estavam ali para falarem, para explicarem aos europeus que a dor dos curdos é uma história antiga que diariamente se renova.

Com eles está a presidente de câmara da cidade mais próxima, a principal dos territórios de fronteira com a Síria. É ainda uma mulher nova, na casa dos 30 anos, e teria, também ela, uma história para contar, porque o seu marido foi assassinado quando era deputado.

Eis o paradoxo: naquela estrada, o memorial assinala a cara e a coroa de um tempo de transição. De um lado, a face do poder discricionário da polícia (ou de um grupo de esquadrões de morte, dentro dela), que sela a arbitrariedade em sangue, e tudo faz por ressuscitar os anos da lei marcial. E do outro lado, um povo que já se manifesta sem ser brutalmente reprimido, que fala na sua língua natal e que elegeu uma mulher para presidir aos seus destinos.

Se quisermos aumentar a complexidade do cenário descrito, acrescente-se, no meio, um governador, o representante de Ankara, garantindo que o inquérito ao caso, já a correr, não será administrativo, mas conduzido pelo Ministério Público. Este governador, de mandato recente, enfrenta a oposição dos sectores militares mais chauvinistas e dirige uma região onde a força maioritária, confirmada em eleições, é o Partido Democrático do Povo, DEHAP, no qual se reconhecem os militantes do Kongra Gel, o novo nome do Partido dos Trabalhadores do Curdistão, PKK...

As aldeias queimadas
O minibus dos eurodeputados e organizações humanitárias atravessa agora caminhos de terra perdidos no infinito planalto curdo. O seu destino é Agilli, em turco - ou Birik, em curdo. É uma aldeia de 45 casas, entre campos de algodão, queimada em 1993 pelo exército. Tem o aspecto de uma ruína arqueológica com milhares de anos porque, ali, ainda se constrói em terracota. Muitos dos seus 400 antigos habitantes estão vivos. Foram forçados a abandonar a aldeia e a partir para as cidades próximas, mas não desistiram nem das terras, nem de um dia regressarem ao lugar onde repousam os antepassados.


Koger Kurt conta como perdeu os seus familiares durante os anos de lei marcial.
Vinte deles esperam-nos naquela manhã fria e, uma vez mais, são as mulheres que tomam a palavra. Koger Kurt, de idade indefinida, mas estimável em 80 anos, procede ao primeiro de vários relatos de morte. Conta como um comandante da tropa perdeu a vida às mãos da guerrilha e como, em represália, a aldeia - que não denunciou os seus - foi punida. Segue-se Saliha Aktar, mãe de sete filhos, um deles preso e desaparecido. A sua narrativa é também a de um marido baleado, executado à vista. Podia prosseguir com os casos e perceberíeis porque não nos aquece a pequena fogueira em volta da qual circulam as histórias. Depois de se fazerem ouvir, o que é extraordinário é que aquela aldeia, uma família alargada, nem desistiu nem se afundou em ódio. Mussa Kurt, filho de Roger, é o representante da comunidade. Com dignidade, proclama: “somos aldeões, civis, e só sabemos que um Estado não pode andar por aí a matar civis”. Sabe o que é preciso. E quando um eurodeputado o questionou sobre a Europa, uma pergunta surrealista naquele fim do mundo, a resposta, lesta, foi: “se a Turquia for para a Europa é bom porque terão de fazer algumas coisas por nós”.

Mais de três mil aldeias dos planaltos foram queimadas durante os anos da lei marcial. Todas as que, confrontadas com a opção de se tornarem aldeias de segurança, militarizadas, recusaram a chantagem. O resultado desta estratégia destinada a secar as fontes de abastecimento da guerrilha das montanhas, é uma infindável lista de mortos, desaparecidos e deslocados. Na maior cidade da região, Diarbarkir, o presidente da Câmara estima em 25 mil os miúdos que deambulam pelas ruas e delas fizeram a sua casa, porque perderam os laços de parentesco.

Quanto aos deslocados, a grande maioria quer regressar às suas aldeias. Mas, para isso, é indispensável reconstruir e atribuir a cada família uma indemnização compensatória. E é ainda preciso acabar de vez com a transformação de aldeões em guardas militarizados dos seus próprios filhos.

O Governador turco apresenta as aldeias de segurança como uma história para crianças: “sabem, antigamente todasas aldeias tinham um ou dois guardas da própria aldeia, que as defendiam dos lobos. Com o terrorismo a ir buscar comida, forçando as pessoas, alargámos o sistema”. Veio-me à memória um comentário cínico sobre homens lobos dos homens, mas o meu péssimo inglês protegeu a diplomacia. Em seguida, a autoridade concluiu: “quando as armas se calarem, recolheremos. Quando o terrorismo acabar, o sistema acaba também”.

Reconciliação nacional
Pois. É preciso dizer umas palavras sobre a guerrilha das montanhas onde nascem os grandes rios da Mesopotâmia. São três mil. Em 1999, Oçalan, o líder histórico do PKK declarou unilateralmente o cessar fogo. O seu braço armado deixou de fazer ataques à tropa turca. Esta é que não deixou de os tentar caçar... Os conflitos que prosseguem hoje são, para a guerrilha, de auto-defesa. A grande maioria desceria das montanhas, entregaria as armas e ingressaria na vida civil. O que falta para isto é que as armas turcas se calem e se abra um processo político que inclua uma amnistia. De outro modo, ninguém desce e haverá sempre quem queira subir.

Por causa do horizonte europeu, a liderança turca aboliu a pena de morte, acabou com a lei marcial e diminuiu drasticamente os controlos de movimentos no sudoeste do país. Aceita também os resultados eleitorais para o poder local, que têm dado maiorias expressivas ao Partido Democrático do Povo (DEHAP). E, pela primeira vez desde a fundação da Turquia, as autoridades permitiram a formação de escolas privadas de curdo e autorizaram horas de emissão na língua de Saladino, num dos canais de TV.

Na delegação de eurodeputados havia quem achasse que tudo isto não passava de “um metro num caminho de um quilómetro”. Mas, visto de lá - ou visto por quem tenha a memória da luta em condições de ditadura – esse metro é muito grande. Demasiadamente grande para ser deitado para o lixo.

O presidente da Câmara de Diarbarkir – uma cidade que tem hoje 1 milhão e 300 mil habitantes, quando há 10 anos não passaria de 300 mil... – diz que “desde 1999 ocorreram duas mudanças essenciais: uma, o abandono da luta armada, a declaração de cessar fogo pela guerrilha; outra, o início da aproximação à Europa. Destes dois factores, ele espera “a aceleração das reformas depois de iniciadas as negociações e uma maior atenção à desigualdade entre regiões na Turquia”. Reclama para o Curdistão turco “um 10 anos de políticas de descriminação positiva, para equilibrar 17 de discriminação negativa”. Este homem de 35 anos, eleito com 70 por cento dos votos nas listas do DEHAP, é um dos rostos da nova geração de líderes curdos, todos jovens e com um significativo peso de mulheres. Como hoje o PKK, dispõem-se a viver em paz na Turquia, desde que os direitos culturais e políticos dos curdos e das outras minorias sejam reconhecidos pelo Estado central. E que tal reconhecimento seja o fruto de uma reconciliação nacional que trate com justiça e dignidade os guerrilheiros e os camponeses das aldeias destruídas.




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