quinta-feira, janeiro 06, 2005

Artigo públicado no Jornal de Noticias

Reorientação à esquerda
Por Edgar Correia


JN, 20 Dezembro 04

Três tónicas se destacam na pré-campanha de Jerónimo de Sousa: dar por adquirido que “a direita está derrotada” (jornais de 19 de Dezembro), sustentar num registo anarco-populista que é preciso escolher entre o “voto útil para eleger deputados e ministros ou o voto útil para resolver os problemas das pessoas” (jornais de 17 de Dezembro) e opor-se a um entendimento à esquerda, com a exigência prévia ao PS de “mudança” e a esperteza saloia de que só “depois de irmos a votos estaremos disponíveis para pensar no que há-de ser melhor para o nosso povo” (Lusa de 18 de Dezembro).
A manterem-se tais tónicas isto significa que a campanha de Jerónimo de Sousa se apresenta como convergente, pela “esquerda”, com a do PSD e do PP. E, objectivamente, como seu aliado eleitoral.
É uma mistificação irresponsável pretender que “a direita está derrotada”.
Primeiro porque as sondagens não votam e em dois meses, até ao dia das eleições, muita água pode correr ainda sob as pontes.
Depois porque a própria direita reajustou os seus objectivos e timings face à situação desfavorável em que se encontra.
O objectivo dos partidos da direita constituírem, conjuntamente, a força mais votada em 20 de Fevereiro foi abandonado, por inatingível nas presentes circunstâncias, e esse recuo foi disfarçado com a concorrência em listas separadas do PSD e do PP. Mas os partidos da direita mantêm o propósito de alcançarem uma maioria de deputados na AR que lhes permita constituir governo (plano a), como afirmou Paulo Portas à RTP. Ocasião que ele aproveitou para repetir a fábula da raposa e das uvas ao proclamar que é “contra a maioria absoluta de um só partido” – obviamente desde que não seja do seu …
Mas para o caso de os dois partidos não alcançarem a maioria dos deputados, a direita da direita que hoje comanda o PSD-Santana e o PP dispõe já de um plano b: a aposta na ingovernabilidade à esquerda depois de 20 de Fevereiro e no agravamento da situação do país; a conquista do lugar de Presidente da República dentro de um ano, num quadro de rotura com o regime democrático constitucional; e a realização de novas legislativas no Verão de 2006 para a reconquista do governo. Quem não acreditar no que a direita da direita anda a chocar deve ler a entrevista de Nobre Guedes ao PÚBLICO de sexta-feira, em que este ministro do governo demissionário avisa que “ainda a procissão vai no adro” e de que “nada disto vai ficar na mesma”, assumindo preto-no-branco o propósito de mudança antidemocrática de regime com recurso a um golpe de estado referendário para alterar a Constituição.
No quadro da crise que o país atravessa, expressões de eleitoralismo à esquerda ou erros de avaliação política, são susceptíveis de ter profundas consequências negativas. As eleições não devem disputadas como um fim em si em que vale-tudo para obter o voto dos eleitores, mas antes como um tempo importante de clarificação e de decisão entre as diversas variantes políticas. Tempo que não deve ser desligado do que se lhe sucede em que deverão ser enfrentados os graves problemas existentes. Nem do tempo, também, de continuação da intervenção em todas as outras dimensões da vida social e política.
ara uma reorientação à esquerda da vida nacional há pois diversas condições que é necessário cumulativamente reunir: que nas eleições de 20 de Fevereiro o PSD e o PP sejam efectivamente colocados em minoria na Assembleia da República; que os resultados abram condições de governabilidade à esquerda; e que se desenvolva em paralelo, para além da dimensão institucional, a intervenção política, social e cultural e o empenhamento de muitos cidadãos na vida do país.

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