A novela
Quinta, 19 Fevereiro 2004
Artigo publicado originalmente no Diário de Notícias, 19 de Fevereiro de 2004
Como anda o país, sugiro que se agradeça aos três actores - Cavaco Silva, Santana Lopes e Marcelo Rebelo de Sousa. Sem eles, a nossa existência nestes dias sombrios seria uma vil e vã tristeza.
São actores de primeira, de texto apimentado e, suspeito, lá mais para diante, anunciam-se prometedoras cenas de acção.
Para já, o melhor é tentar deslindar os múltiplos enredos da novela. Essa a dificuldade e o aliciante. Eu poria as coisas assim:
Um pode, mas não sabe se quer.
Outro quer, mas não sabe se pode.
E o terceiro queria mas sabe que não pode. Por isso, qual tele-evangelista, diverte-se a derreter o que quer mas não sabe se pode.
Será? Si non é vero, pelo menos é benne trovato.
Para lá desta santíssima trindade, temos ainda o papa, perdão o primeiro-ministro. Que quererá ele, se é que tem direito à opinião?
Um presidente com perfil de primeiro-ministro a entrar-lhe pela casa dentro às terças e quintas? Ou um presidente com inolvidáveis e surpreendentes surpresas às quartas e sextas?
Durão Barroso suspira. O que ele queria mesmo era Jorge Sampaio até ao fim dos dias. Esse, pelo menos, é expectável. Britânico. E até acha que não se devem colocar ao país mais problemas dos que o que ele já tem. Mas infelizmente para o primeiro-ministro, a lei não autoriza um terceiro mandato.
A novela deve realçar o lado humano da coisa:
O que pode mas não sabe se quer, sofre horrores, garanto-vos. Em circunspecto silêncio, hesita. Quer ficar na História como primeiro-ministro ou correr o risco de ser um eterno candidato a Presidente? Ainda por cima, sendo a presidência uma chatice para quem se considera um homem de obra.
A vida não é fácil para o antigo primeiro.
O que quer mas não sabe se pode, faz contas à vida. O custo de oportunidade é terrível. Ele sabe que, salvo cataclismo, um presidente faz dois mandatos, dez anos. Mais dois que ainda faltam são 12. É muito tempo para esperar, para lá da improbabilidade da direita aguentar um ciclo político dessa duração. Ou seja, se não é agora pode nunca mais vir a ser.
O enfant terrible nem deve dormir direito. Para já, Lisboa é uma canseira. A mera possibilidade de um novo mandato à frente da capital, o põe doente. Ao contrário, a presidência seria o máximo, divertidérrima. A vida, às vezes, é muito injusta, é verdade. Deu deus nozes a quem não tem dentes e vice-versa.
Finalmente, o terceiro.
Ele é aquela criatura melíflua que, a livros tantos, surge para atazanar a aldeia gaulesa que resiste orgulhosamente ao imperador romano. Colocar todos contra todos é o seu - e já agora o nosso - supremo gozo. Eles merecem, garanto-vos.
O mais difícil é o fim. Porque não consigo fugir à moral desta história de circo onde falta o pão. Agora que o país está mesmo de tanga, eles entretêm-se, mimam-se com desvelo e a ternura dos melhores ódios. Sinceramente, o país merece este espectáculo de vícios privados - é o seu prémio de consolação.
Miguel Portas
mportas@netcabo.pt
quinta-feira, março 03, 2005
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